sábado, 22 de dezembro de 2007

História desajustada

Era uma vez um bronco que tinha a cisma de perseguir e abraçar princípios. Procurava ter carácter e comportava-se do ponto de vista ético de forma digna. De início não sabia, não se apercebia e até não sofria com o preço elevado a expiar. O decurso do caminho percorrido, lentamente, primeiro, já lhe entreabriu a compreensão. Não quis acreditar. Uma aceleração súbita nos derradeiros tempos prostrou-o atónito. Era uma vez.
O magano robotizado por uma urbanidade educativa onde o mundo traçado era constituído por gente sempre muito séria ainda que triste e circunspecta quiçá adequada aos tempos de outrora então vividos, pura e simplesmente dá-se conta, tarde e a más horas, de quão foi vã a sua aprendizagem em face da realidade dos rodeios em que se vê envolvido diariamente.
Pautando uma vivência quotidiana pelo respeito ao próximo, material, profissional, social e o mais grave de tudo pelo acato emocional, o biltre encolheu-se, enredou-se e até se auto penalizou tudo isto por que e acima de tudo está planeado para ter presente e até dar primazia ao bem dos outros. Por vezes o seu software ainda lhe diz “ atenção ao prejuízo”. Mas a programação chave retorque e repõe o original .
Passaram-se dias e meses. Semanas e anos. E o birbante impávido e sereno é incapaz de assimilar. Continua a dar e a dar-se. Enobrece-se até. Na frente do touro. Quando acha forçoso. Pelo menos aos seus olhos. Ás vezes mira-se e dá-se conta que como qual fidalgo arruinado a tentar viver ainda numa opulência perdida os seus métodos e o seu posicionamento na vida foram devastados e ultrapassados. Dá-se conta mas vê-se impotente em modificá-los em face das suas inatas idoneidades
O tratante apesar de tonto arrima-se aqui e ali. Vira comodista. Ensurdece. Toma até umas pílulas preceituadas pelo médico. E eis que desacata congénitas concepções imbuídas até à última gota no âmago mais profundo do seu ser. Agencia então até viver com as ilusões que o mundo assim lhe transmite e que lhe não serve. Encanta-se e alucina-se. Embrenha-se. Interage. Harmoniosamente. Tantas e tantas vezes. Tenta desta forma ligar-se à vida. Tenta-se por isso com aquilo que o orbe lhe quer dar. Mas, decididamente, este universo assim oferecido não é o seu. Não é a vida que lhe ensinaram. Mas não consegue descobrir outra. E volve então e naturalmente às suas origens mergulhando na inépcia comportamental do seu cosmos pessoal já que tem grande nostalgia desse mundo aprendido/pressentido e não se conhece noutra forma de vivência. Isso coíbe-o de tocar a vida a 4 mãos. Isso impede-o de encontrar o seu lugar na vida.
Mas eis que um dia o bigorrilha achou-se velho. Meditou e meditou. E quanto mais o fazia mais se compungia. Não por ele pois sempre lhe bastaram e bastarão minguas de pólen para se preitear. É que amoldado a tal todo não cuidou como devia de alguns dos seus dilectos. E isso contrista-o em particular perante moléstias, tarefas árduas ou festividades todas exigentes em meios materiais inalcançáveis. A agonia revigorou descuidado que foi o ser mais bonito com que alguma vez contracenou em toda uma já longa idade.
E dói-lhe. Como lhe dói.
Mas na profundeza da sua tristeza contraditória o João Ninguém, paradoxalmente ou não, continua a acreditar que tudo aquilo que vale a pena viver no projecto humano vem do coração. Vale-se ainda do seu inconformismo mas custa-lhe a crer que mesmo havendo boa fé o inconformismo, as decepções e as inadequações se forem as únicas coisas possuídas sejam um bom currículo para levar para o além e apresentá-las perante Deus.
O que lhe fazer?
Dezembro 2007

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

As Três Marias

Foi tudo. A primeira.
A luz inicial. O vislumbre do amor na ponta de um sorriso quiçá sofrido, intranquilo e já rugoso mas sempre meigo, encantador e desarmante de melancolias, azedumes e agruras. Um sorriso que afagava a alma. Era ela e dela.
Colo seguro das primárias vacilações também era ela e dela.
Era ela e dela o manjar onde era sorvido o sentido de justiça, lealdade, tolerância e respeito. Porque disso era o expoente.
A mestra também. Ensinamentos para sempre orquestrando toda uma vida.
O Cultivo da amizade. Por que ela própria era afeição.
Era tudo no meio de tantos e de tudo.
Partiu. Um dia. Mal podia crer. Um abismo de horror se abriu. Uma mágoa interminável. Relativizou-se tudo e para tudo. Ficaram os alicerces da casa.
Obra sua.

Especial também a segunda. Em oceano revolto de águas e agrestes ventanias onde hordas de  vagas fantasmagóricas assumiam proporções gigantescas foi  porto seguro. O refúgio de onde partiam uns olhos verdes faiscantes que estendiam tentáculos robustos e meigos amparando fragilidades latentes susceptíveis de naufrágio. Foi quem suturou com saber e arte feridas lacerantes conseguindo dissimulá-las de forma a que os seus vestígios disformes se tornassem menos doridos, menos angustiados e amargurados.
Partiu. Um dia. Também. Seguiu a sua caminhada. Naturalmente. Abriu-se um abismo de saudade.
Foram conseguidas e erguidas as paredes.
Obra sua.

Decisão mais acertada de toda uma vida. A terceira.
Indescritível beleza exterior. Amor, amizade e ternura desprendem-se naturalmente do seu ser propagando uma sensação de conforto, segurança e bem estar.
Uma formosura intima superadora em grau superlativo absoluto toda a magnífica visibilidade física, foi descoberta logo a seguir.
Do âmago emana uma capacidade inaudita de amar e dar. Compreender e aceitar. Perdoar e respeitar. Amparar e proteger. Para tudo e todos.
Trave mestra de toda uma família. Dedicação ilimitada. Disponibilidade e tolerância absoluta. Enseada de protecção e apoio. Privilégio do clã.
Na árdua labuta diária um sorriso aberto, imaculado e genuíno. Mesmo na dor. Na adversidade. No erro. Na limitação.
Frágil mas robusta.
Um ente extraordinário merecedor dos favores da vida pouco magnânima para com ela.
Nunca reclamando. Logo se contentando. Por amor decerto e por certo.
Muito mais do que uma grande esposa. Muito mais de que uma enorme mãe. Muito mais do que uma mulher de sonho. Um ser humano assombroso.
Um écloga tornada realidade.
Feito o telhado. Postadas janelas e portas. Inacabada. Por em constante aperfeiçoamento.
Obra sua.

JP